Katia Canton

Os Labirintos Sinceros

Olho uma tela construída, em detalhes, delicadamente. Uma tela com corpo, protuberâncias. Há desenhos multicores, pequenos quadrados e riscos, que parecem marcar sobre o fundo branco uma espécie de alfabeto, uma notação coreográfica que resguarda uma dança plena de lirismo.

Os quadradinhos coloridos que caribam o plano branco são, na verdade, resgates da memória daquelas pequenas coisas que povoam nossas vidas com descrição, quase transparentes e despercebidos, mas que ajudam a construir a história de nossa existência. Potencializam-na.

Havia uma pedra no meio do caminho. No caminho da vida da menina Alzira Fragoso, no fundo do quintal de sua casa, havia caquinhos de cristal colorido. Que ela catava, colecionava e arrumava para dar sentido a sua vida.

Trata-se de uma singela lembrança que, no decorrer do tempo, atribuiu potência a sua arte.

A arte, a poesia da vida, afinal, depende das coisas pequeninas.  Como diz o grande Manoel de Barros, a poesia se presta das insignificâncias, das inutilezas, das coisinhas que ficaram nos cantos, nas esquinas, nos fundos de quintal.

Pois esses cacos de múltiplas cores ganharam um corpo de luz e de vida na obra da artista. Ganharam combinações e organizações espaciais múltiplas. Passearam pelo espaço, ora se agrupando, ora se soltando e se amarrando a fios soltos pela tela.

Alzira Fragoso brinca com quadradinhos e fios, costurando imagens que lembram labirintos, caleidoscópios, mosaicos, brinquedos de criança. São ainda partituras musicais, panos de fundo para a criação de uma sonoridade sincera.

Há de se lembrar algo de musical, de sonoro, nas telas jazzísticas de Piet Mondrian, nos drippings de Jackson Pollock, na op art de Vasarely.

Essa artista busca especificamente uma alegria, uma verdadeira vocação que vai além dos limites conceituais e formais da arte. Ela busca uma dança da vida, uma musicalidade que ecoa na constatação de uma honestidade com o próprio fazer e o sentir.

É assim que Fragoso homenageia a pintura, em sua tradição repleta de história e de experiência; homenageia a memória dos cacos de vidro de sua infância; homenageia a música e os fios que tecem a teia de toda vida.

Para compor esse seu labirinto afetivo, a artista costurou fios e pregou neles alguns cristais. Eles parecem notas musicais dissonantes, tônicas desse testamento de cores e formas que ela nos oferece sobre a superfície da tela. Há ainda pequenos quadrados feitos com folhas de ouro, intercalando pinturas e fios.

O ouro e o cristal. Alzira Fragoso nos oferece suas preciosidades. Eleva as pinturas de quadradinhos--o que seria corriqueiro e singelo--à categoria de tesouro compartilhado.

Compondo suas telas ao redor de um lustre de cristal multicolorido, a artista coroa essa homenagem. Aceita a tradição, a memória, a música e a dança, a brincadeira de criança. Acolhe o que há de belo, o que há de simples, e, afinal, de importante na vida da gente.

Katia Canton
PhD em Artes Interdisciplinares pela New York University,
docente e curadora do MAC USP.