Agnaldo Farias

Carta à Alzira

Querida Alzira,

Passados alguns meses de uma prazeirosa visita ao seu atelier, repassando agora seu portfólio e rememorando algumas das obras vistas “ao vivo”, no ambiente em que ela foram produzidas, chegou-me forte seu esquadrinhamento sobre as relações pessoais, com destaque as amorosas; visões invariavelmente nostálgicas dos impulsos divergentes e contraditórios em direção ao outro e que frequentemente nos empurram para longe de nós mesmos; caminhos tortuosos pontuados por desilusões e que não raro confluem para a solidão, protagnista de vários de seus delicados desenhos rudemente lavrados em mármore ou pirogravados em tecido, nos dois casos desenhos aparentados com bordados, essa forma atávica e característica de trabalho feminino, nos quais casais aparecem apartados, mulheres solitárias diante de copos e livros, os recursos clássicos de ensimesmamento, as estratégias de esquecimento do mundo a nossa volta. A nudez de muitos de seus casais ou homens e mulheres, aliado a recorrência de figuras mítico-religiosas, de anjos à árvores, bíblicas ou não, passando pelos textos subtraídos das sagradas escrituras, tudo isso mesclado as passagens de um cotidiano reconhecível por qualquer um de nós, faz-me pensar na recorrência inevitável dos mesmos obstáculos e desencontros, nossa condição e destino. Desenhando sobre a lona vulgar, sobre o mármore clássico, ancestral e erudito, ou ainda sobre o estofado de cadeiras e objetos prosaicos, citando passagens sagradas ou extraindo excertos de telas pertencentes a melhor tradição da História da Arte, você insinua que andamos em círculos, que nada mais fazemos a não ser reiterar, em chave histórica distinta, os mesmos passos dos nossos antecessores, situação que, por outro lado, eleva a outro patamar um simples banho num lago, como indica a tela “Purificacão”, ou a ciranda de crianças ao redor de um coração. Essa compreensão é reforçada pela maneira “ingênua” dos seus desenhos, a exploração do espaço da tela, seja ele quadrangular ou ovalado, atráves de cenas isoladas entre si, várias delas acompanhadas por textos, formando narrações em mosaico, reiterando um certo estado de pureza de nossa parte, incapazes que somos de controlar nossas vidas, uma condição que nos exime de um julgamento implacável. A análise das instalações, que eu só conheci através das fotografias constantes do seu portfólio, leva-me a crer que através delas você abre uma outra perspectiva de sua pesquisa poética, deixando de lado o timbre mais doce, até ambíguo, porquanto resultado de uma imaturidade projetada, do seu traço. Evitando imagens explícitas, metáforas mais facilmente decifráveis, você lança mão de indíces enigmáticos, imagens fortes e sedutoras, mais resistentes a compreensão e por isso mesmo mais duradouras. “Quero te achar”, tanto quanto “O amor e seus demônios”, são dois excelentes exemplos desse novo caminho. O feerismo do lustre, protagonista de “Quero te achar”, faz da obra uma apoteose de uma certa definição do feminino, patente na transparência rosada de seus componentes de vidro, campânulas e pingentes,  e no modo como se impõe as paredes igualmente rosa do ambiente. Duplicado, excessivo em sua verticalidade, atravessando do teto ao chão, o lustre ainda se prolonga pelo espelho depositado aos seus pés, como num poço rosado. A reverberação das luzes acompanha a dos sons, os trinados sutis, quase imperceptíveis, assim imagino e os vejo, produzido pelo entrechoque constante das componentes de vidro reagindo as correntes de ar. Já “O amor e seus demônios” oferece-nos uma imagem sobrenatural: instalada na Capela do Morumbi, hoje dessacralizada mas durante séculos palco de cerimônias religiosas, entre as quais, por certo, o casamento, esse rito voltado à consagração da entrega dos casais apaixonados ou não tanto, vemos uma placa de mármore láctea depositada sobre o chão, dotada de uma fenda por onde “escorre” dez metros de cabelo ruivo sobre um tule igualmente branco. A sensualidade da noiva, referida ao cabelo que só poderia ser visto no momento em que o noivo descerrasse o véu que o encobria, vê-se aqui jorrando sobre os signos da pureza, conspurcando-os, advertindo-nos da força irrefreável do sangue e carne dos amantes, uma dimensão animal impossível de ser abafada, não obstante toda nossa submissão as idealizações acerca do que nós, homens e mulheres, devamos ser.

Seguimos conversando?

Um abraço carinhoso do

Agnaldo Farias