Katia Canton

Vermelho

Nessa exposição o vermelho não é a cor predominante. Ali Alzira Fragoso constrói um ambiente demarcado pelas construções da memória, as texturas deixadas pelo tempo, a história acumulada. O espírito dessa obra ganha corpo nas tonalidades terrosas, nos tons de ferrugem, que parecem reproduzir as camadas temporais, o amarelado, o cheiro de guardado, as ranhuras e manchas dos tecidos das telas e rendas, da própria pele.

Na verdade, o vermelho diz respeito à especificidade da história contada. Vermelha é a cor do desejo, da pulsão vital, mas é também a cor da exclusão, dos desvios, dos pequenos e quase invisíveis detalhes que se insinuam em cada imagem apresentada pela artista. Veremos como o vermelho, quase imperceptível é a chave para a construção de uma poética do feminino, com suas dores, prazeres e confrontos latentes. 

Dentro da exposição encontramos obras em mármore branco, cujas figuras são cravadas com pontas de diamante e tornadas visíveis com bastão oleoso. Foi na prática minuciosa desse tipo de gravação, que Fragoso encontrou as linhas de seu percurso na arte. Suas linhas que partem de cenários quase autobiográficos para soltarem-se num campo mais universal, ganhando traços, linhas, texturas que dizem respeito à condição humana.

Em um grande painel branco, estão gravadas cenas da infância: uma menina de cinco anos de idade está brincando. Ali em figurações que se repetem, como numa padronagem de tecido, inspirada na tradição francesa do toile de jouy, Fragoso compõe uma fachada de memórias monocromáticas, onde habitam crianças, árvores, bancos.

Em outra série, placas isoladas do mesmo mármore branco exibem mulheres nuas, emolduradas dentro de paisagens de interiores. Uma lê deitada na cama, outra senta-se à mesa vazia. Nesse conjunto de obras, a artista traça um paralelo entre o feminino e a solidão. Seriam essas condições intrínsecas? Nas cenas, o despojamento dos corpos nus refere-se à potência de sexualidade, mas também a um despojamento profundo das máscaras sociais, que teimosamente busca a verdade.

Alzira Fragoso busca a des-domesticação da vida, um retirar delicado mas intenso das camadas de obviedades dos rituais e das tradições, revelando suas nuances, seus lados ocultos e muitas vezes contraditórios. E é exatamente nesse jogo de imagens que se revela o sentido latente do uso da cor vermelha.

Ele aparece nas três telas ovais que pontuam a mostra.

Numa delas se configura uma ciranda de crianças. Ali, onde a aparência inicial é de alegria pueril, surge diante dos olhos um incômodo estranhamento. Duas meninas, feitas com traços idênticos, estão ao largo, excluídas da roda. Acima, na borda direita da tela, saindo para fora dos limites da tela, surgem dois detalhes de pernas com sapatos vermelhos. Nessa cena, todas as imagens foram gravadas a fogo. A partir de um trabalho de desenho pirogravado, a artista recortou cada uma das figuras, colando-as sobre uma tela escurecida com a cor do ferro e da terra.

Apenas alguns detalhes surgem na cor vermelha. Os sapatos de uma menina, cortados da cena, mutilados em sua completude são vermelhos. A boneca de pano, única presença não-humana na roda, é vermelha. O vestido de menina que ficou de fora é vermelho. Dentro da roda, um coração flutua, cravado de espinhos vermelhos.

Em outra tela, uma moça jovem e nua está deitada sob uma árvore. Tudo ali se embebe de aparente calma, reforçada pelos tons terrosos do fundo, das figuras pirogravadas, da árvore esverdeada, revestida de organza de seda. Apenas um pequeno pássaro, que vem ao encontro do corpo da jovem possui o bico vermelho, insinuando uma potência de ato sexual. O sentido da cena é obscuro, misterioso, revestido de um código de sonho.  

As telas de Alzira Fragoso são sintéticas, harmônicas na organização das figuras mo plano bidimensional, o que imprime a elas um tom orientalista. O desejo da artista é, pois, a construção de verdadeiros haikais visuais.

A terceira tela oval, intitulada Madona, está emoldurada em uma série de tecidos e rendas. O chantilly, o linho puro embebido por camadas de goma laca, o algodão cru—essa coleção de tecidos puros sobrepostos, organizados em formas ovais concêntricas, atribuem à imagem um passado, lembranças, formas de camafeus, panos de enxovais. No centro da obra, a menor forma ovalada, em camurça terrosa, traz a imagem de uma mãe amamentando um bebê.

Trata-se da filha da artista, com seu bebê recém-nascido. Trata-se também do paradigma da mater dolorosa, que exala a toda felicidade e toda dor da experiência da maternidade. Eis porque a única, mínima imagem vermelha é o pingente de coração, pendurado no pescoço da mulher.

A exposição mostra ciclos da vida, repertórios do feminino, memórias de paisagens internas. Alzira Fragoso nos oferece um museu de imagens que buscam o sublime, mas que apenas na aparência repousam sobre o conforto das tradições. Nos tons ferrosos, nas organzas e nas rendas, nos rituais de brincadeiras da infância, do repouso e da materniadae se escondem, delicada e pungentemente, as ambivalências do feminino, as dores sutis e, por que não, repletas de uma complexa beleza.

Katia Canton
PhD em Artes Interdisciplinares pela New York University,
docente e curadora do MAC USP.