Norval Baitello Junior

A escrita e o esquecimento, o mármore e a memória:
Os templos dos fios do tempo Alzira Fragoso,
a biblioteca e os novelos de fios


Os fios da escrita

A escrita se faz com linhas e a linha vem do linho ou da linhaça, que vêm ambos das entranhas da terra. As sementes plantadas nos sulcos rasgados e arados da terra nascem crescem e florescem. Entre o linho e seus fios e a linhaça e seus traçados há, dessa forma uma intima relação. Mas também entre os sulcos traçados na terra pelas mãos do homem e os fios de sua escrita, os fios de escrita, os fios de seus tecidos sua segunda pele e os fios de seu destino haverá uma profunda e inegável proximidade. Segundo Vilém Flusser "o escrever se apresenta como expressão de um pensar unidimensional e, por isso, de um sentir se um querer, de um valorar e de um agir também unidimensionais: de uma consciência que, graças a escrita , emerge dos círculos vertiginosos da consciência pré-escrita" (Flusser, Die Schrift , 1987:11). Assim, a escrita traduz o mundo tridimensional e palpável em fios unidimensionais, somente passíveis de manipulação com as pontas dos dedos ou com instrumentos ainda mais finos que os dedos, com agulhas, com bicos de penas, com pontas agudas perfurantes e cortantes, com cinzéis e buris. Por isso, escrever e descrever o mundo requer perfura-lo, corta-lo, rasgá-lo com os cortantes fios da escrita. E, com isso, transforma-lo em fios de escrita.

Escrever e cortar

Nossos ancentrais indo-europeus usavam o radical " skribh" para dizer 'cortar' ou 'separar'. Desta raiz nasceram as palavras latinas 'crimen"(decisão judicial e posteriormente o objeto da decisão, o crime) e 'discrimen' (separação, diferenciação), 'cernere' (crivar, peneirar separar, selecionar), ' crimis' (cabelos, cabeleira de mulher, rastro luminoso de estrelas e cauda de cometa), 'certus' (decidido) e, naturalmente, "scribere' (escrever, contar, traçar caracteres). Os mesmos indo-europeus usavam também o radical "sker" para dizer 'cortar', do qual resultaram as palavras latinas 'caro, carnis' (pedaço cortado de carne) e 'corium' (pedaço de couro). Sem duvida há nesse conjunto de palavras e seu passado, suas raízes profundas, muito mais que coincidências. Seus vínculos de parentesco nos desvelam a natureza cortante da escrita, que não apenas riscava e rasgada as duras superfícies, como também rasgava e penetrava nas ideias e pensamentos abstratos, discriminando-os, fazendo discernir. Assim o fio da navalha, os fios da escrita e os fios dos cabelos constituem uma amostra da ambivalência presente na alma da cultura humana: os fios servem para cortar e para unir, para rasgar e para tecer, para discriminar e para escrever. Esta ambivalência primordial e magistralmente desenhada pelo trabalho de Alzira Fragoso, quando aprisiona, separa, incrimina os fios para dilacerar o mármore, transformado em membrana e registro das entranhas e dos veios da terra, e o couro (e seus sucessores, o pergaminho, o papel e as películas sintéticas transparentes), transformado em fronteira, limite e membrana da carne.

A escrita e a decifração das tramas esquecidas

Escrita é linha a ser lida e 'ler' significa eleger, isto já esta presente no verbo latino 'legere'. Quando se elege um fio, todos os outros se retiram para os bastidores escuros do esquecimento. Mas esquecer não quer dizer aniquilar. A cultura humana desconhece o descarte, fundada que está nos meandros da memória. No recato das raízes transformam-se os fios esquecidos em forças atuantes. São as raízes, invisíveis aos olhos, que sorvem a seiva da terra. É nos fios invisíveis do esquecimento que buscamos a matéria-prima das renovações e das inovações. Já disseram nossos poetas concretistas: novo novelo, novo no velho". É nos velhos novelos da memória que se revelam os cenários e os horizontes do porvir, por vezes invisíveis. Foi Walter Benjamin que declarou: "Esconder significa deixar rastros. Mas invisíveis. É a arte da mão leve. Rastelli conseguia esconder coisas no ar" (Benjamim, Gesammelle Schriften 1982. IV. 1:398). Pois esquecer também significa tornar invisível vale dizer, deixar pistas. E tornar invisível e conferir o poder de agir sem ser percebido, agir nos subterrâneos e nos bastidores, tramar tramas e tecidos diáfanos. As tramas invisíveis dos tecidos diáfanos urdidos nos bastidores e nos subterrâneos do esquecimento formam as outras dimensões da escrita, as dimensões profundas, profunda e densamente cifradas. É por isso que toda escrita precisa sempre ser decifrada. Assim, ler requer decifração das linhas traçadas e das tramas esquecidas e toda decifração requer tempo, tempo lento, tempo lânguido. O pensador alemão Harry Pross o nomeia "die Lange Weile des Lesens" ( o longo tempo do ler ou em (in) tradução livre, a lenta languidez do ler). "Lange Weile", assim escrito em duas palavras, significa em alemão 'longo momento' e "Langeweile", assim escrito, uma única palavra, significa 'tédio' (Cf.Pross, in Rapsch (ed) Uber Flusser 1990:141). Assim, o tempo da escrita é o tempo lento do sempre, o tempo eterno do tédio. O tempo dos séculos e séculos do que esta por vir, surpreendentemente, séculos nos quais se projetam os seres unidimensionais da escrita. Uma escrita nunca é apenas para agora . Perdurar é seu lema, perdurar para sempre, entranhar-se cortante nos veios da dimensão temporal infinita do mármore.

A vitória sobre a morte

O deus grego Zeus foi salvo de ser devorado por seu próprio pai, Chronos, porque a mãe entregou ao pai, em vez da criança, uma pedra envolta em panos. A indestrutibilidade da pedra, sua resistência ao tempo, estão na origem da cultura humana quando o homem toma consciência de sua própria morte. A pedra, usada como lápide, não apenas simboliza a eternidade e a imortalidade, como também passa a simbolizar os mortos e, com isto, a configurar-se como vinculo – como um fio invisível – entre os muitos tempos e as muitas gerações. E, assim como os mortos transmitem à pedra sua identidade, a pedra transfere a escrita que nela se insinua, sua imortalidade. As inscrições que rasgam as pedras perduram com as pedras, para sempre. O grande jornalista austríaco Karl Kraus disse: "O que vive na linguagem, vive com a linguagem". Pode-se dizer o mesmo da relação da escrita com a pedra: "o que vive na pedra, vive na pedra". Nesta formulação final, a morte já está suprimida. Por pura obra da pedra e da escrita. Obra dos deuses, por um lado, porque fizeram das pedras, escrita. E obra dos homens, por outro, porque fizeram, da escrita, pedra. Por meio dessa estratégia, logra o homem vencer a morte: transforma-se a si próprio em escrita que se transforma em pedra. Fiados pelas Moiras, irmãs da Horas, assim se fiam as invisíveis tramas do tempo, cuidadosamente guardadas nos templos da escrita de todos os tempos, os livros e as bibliotecas, os templos dos fios do tempo.

Norval Baitello Junior
Doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade Livre de Berlim,
Professor da Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da
PUC de S. Paulo e Diretor científico do Centro interdisciplinar de Pesquisas em
Semiótica da Cultura e da Mídia.